segunda-feira, 6 de junho de 2016

VERDADEIROS E FALSOS INSTRUTORES ESPIRITUAIS


VERDADEIROS E FALSOS INSTRUTORES ESPIRITUAIS
Por René Guénon

Cap. XXI de Initiation et Réalisation Spirituelle
Tradução de Luiz Pontual
Copidesque de Constantino K. Riemma

Insistimos com frequência sobre a distinção que deve ser feita entre a iniciação propriamente dita – que é a vinculação pura e simples a uma organização iniciática, implicando essencialmente na transmissão de uma influência espiritual – e os meios que na sequência  poderão ser postos em prática para tornar efetiva uma iniciação que, em princípio, era apenas virtual. A eficácia de tais meios está naturalmente subordinada, em todos os casos, à condição indispensável de uma vinculação prévia. Estes meios, enquanto constituintes da ajuda prestada do exterior ao trabalho interior, do qual deve resultar o desenvolvimento espiritual do ser (e está claro que jamais suprirão este mesmo trabalho) podem ser denominados, em seu conjunto, pelo termo de instrução iniciática, tomando este em seu sentido mais amplo. 

A instrução iniciática não se limita à comunicação de certos dados de ordem doutrinal, mas inclui igualmente tudo o que, de algum modo, é próprio para guiar o iniciado no trabalho que faz para alcançar uma realização espiritual seja qual for o seu grau.

A Catedral de Notre Dame de Paris
O mais difícil, principalmente em nossa época, não é obter uma vinculação iniciática, o que às vezes é até muito fácil (visto que certas organizações iniciáticas se tornaram muito mais "abertas", o que, por outro lado, atua para elas como uma causa de degeneração). O mais difícil, de fato, é encontrar um instrutor verdadeiramente qualificado, quer dizer, capaz de cumprir realmente a função de guia espiritual, aplicando todos os meios convenientes às suas próprias possibilidades particulares, fora das quais é evidentemente impossível, até mesmo para o Mestre mais perfeito, obter algum resultado efetivo.

Sem tal instrutor a iniciação – ainda que seja válida em si mesma e desde que a influência espiritual tenha sido realmente transmitida por meio de um rito apropriado – permaneceria simplesmente virtual, salvo em alguns casos bem raros, excepcionais. Devemos recordar que o iniciador que atua como "transmissor" da influência vinculada ao rito não deve estar forçosamente apto para desempenhar o papel de instrutor; se ambas as funções encontram-se normalmente reunidas nas instituições tradicionais que não sofreram degradações, estão muito longe de serem sempre assim nas atuais circunstâncias.

O que agrava ainda mais a dificuldade é que aqueles que têm a pretensão de ser um guia espiritual, sem estarem absolutamente qualificados para desempenharem este papel, provavelmente jamais foram tão numerosos como em nossos dias. O perigo que se decorre disso é ainda maior quando estas pessoas possuem faculdades psíquicas muito potentes e mais ou menos anormais, o que evidentemente nada representam do ponto de vista do desenvolvimento espiritual. Essas faculdades psíquicas podem, inclusive, revelarem-se um indício muito desfavorável a este respeito, embora possam enganar e se imporem a todos aqueles que não estão suficientemente advertidos e que, por conseguinte, não sabem estabelecer as distinções essenciais entre o psíquico e o espiritual. É necessário, portanto, colocar-se o mais possível em guarda contra estes falsos instrutores, que só podem extraviar aqueles que se deixam seduzir e que deveriam sentir-se muito satisfeitos se não lhes ocorrer nada mais lamentável que pura perda de seu tempo.

Mesmo que esses falsos instrutores não sejam mais que simples charlatães, como há muitos atualmente, ou que se iludam a si mesmos antes de enganar aos outros, é algo que evidentemente não muda absolutamente as consequências. Até mesmo aqueles que, em certo sentido, são completamente sinceros (pois isso até pode ocorrer em vários graus) não deixam possivelmente de ser os mais perigosos em razão de sua própria inconsciência. Quase não há necessidade de acrescentar que a confusão entre o psíquico e o espiritual, que desgraçadamente está tão propagada em nossos contemporâneos, e que denunciamos em numerosas ocasiões, contribui em grande parte para a ocorrência dos piores equívocos a este respeito. Se acrescentarmos a isso o atrativo dos pretensos "poderes" e o gosto pelos "fenômenos" mais ou menos extraordinários que, por outro lado, quase inevitavelmente estão associados a tais figuras, teremos então uma explicação muito completa do êxito de certos falsos instrutores.

Apesar disso tudo, há uma característica pela qual muitos destes falsos instrutores, senão todos, podem ser reconhecidos facilmente por uma consequência direta e inevitável de tudo o que constantemente expusemos com respeito à iniciação. Diante das questões que nos foram expostas ultimamente a propósito de certos personagens mais ou menos suspeitos, acreditamos ser útil esclarecer tal característica de maneira ainda mais explícita. Qualquer um que se apresente como instrutor espiritual sem vincular-se a uma forma tradicional determinada ou sem se conformar às regras estabelecidas por estas, não pode ter verdadeiramente a qualidade que se atribui; pode ser, segundo o caso, um vulgar impostor ou um "iludido" que ignora as condições reais da iniciação. Neste último caso, mais ainda que no do impostor, é de se temer que ele seja, em definitivo, nada mais que um instrumento a serviço de algo que ele sequer suspeita.

Diremos o mesmo de outra característica, que se confunde forçosamente com a anterior e que diz respeito à pretensão de proporcionar indistintamente um ensino de natureza iniciática a não importa quem, inclusive aos profanos, descuidando a necessidade, como primeira condição de sua eficácia, da vinculação a uma organização definida. Essa advertência vale ainda com relação a qualquer um que proceda segundo métodos não conformes aos de alguma iniciação reconhecida tradicionalmente. Se os interessados soubessem aplicar estas poucas indicações e sempre se apoiassem nelas, os promotores das "pseudo-iniciações", sejam quais forem as formas de que estejam revestidos, seriam desmascarados de imediato.

Não devemos nos esquecer, naturalmente, de contar também entre as "pseudo-iniciações" todas aquelas que pretendem se apoiar em formas tradicionais que não têm atualmente nenhuma existência efetiva; mas estas ao menos são claramente reconhecíveis à primeira vista, sem que haja necessidade de examinar as coisas mais de perto.
Falta somente considerar o perigo que pode resultar de representantes de iniciações desviadas,  embora reais, mas que deixaram de estar na linha da ortodoxia tradicional.


Estas dissidências, certamente, estão muito menos propagadas, ao menos no mundo ocidental e, em consequência, torna-se menos urgente nos preocuparmos com elas nas circunstâncias presentes. Além disso, podemos dizer que os "instrutores" que se vinculam a tais iniciações têm geralmente em comum com aqueles dos quais acabamos de falar, o costume de manifestar seus "poderes" psíquicos a qualquer pretexto e sem qualquer razão válida (pois não podemos considerar como tal o propósito de atrair a seus discípulos ou retê-los por este meio, como é habitualmente o seu objetivo), e atribuir a maior importância a um desenvolvimento excessivo e mais ou menos desordenado das possibilidades desta ordem, o que se faz sempre em detrimento do verdadeiro desenvolvimento espiritual.

Quanto aos verdadeiros instrutores espirituais, o contraste que apresentam com os falsos, nos diversos aspectos que acabamos de indicar, pode, mesmo sem dar completa segurança (no sentido em que estas condições, mesmo que  necessárias, podem não ser suficientes), nos ajudar bastante na avaliação.

Convém fazer, ainda, outra advertência para dissipar algumas idéias falsas. Contrariamente ao que muitos imaginam, nem sempre é necessário, para que alguém seja apto para desempenhar o papel de instrutor dentro de certos limites, que tenha alcançado ele mesmo uma realização espiritual completa; deveria ser evidente, de fato, que não é preciso de tanto para ser capaz de guiar validamente a um discípulo nos primeiros estágios de seu caminho iniciático. Quando o discípulo tiver alcançado o ponto além do qual não pode mais ser conduzido, é óbvio, que o instrutor que se encontre neste caso e que seja verdadeiramente digno desse nome, não vacilará jamais em dizer que a partir de então já não pode fazer nada por ele.  

Para os discípulo prosseguir seu trabalho nas condições mais favoráveis, cabe ainda ao instrutor indicar, seja  seu próprio Mestre, se isso for possível, seja outro instrutor ao qual reconheça como mais completamente qualificado que ele próprio. Quando se passa desse modo, não há em suma nada de assombroso nem de anormal no fato de que o discípulo possa a partir de certo ponto superar o nível espiritual de seu primeiro instrutor. Este, por sua vez, se for verdadeiramente o que deve ser, só poderá se felicitar por ter contribuído com sua parte, por modesta que seja, para lhe conduzir a esse resultado.

Os ciúmes e as rivalidades individuais, de fato, não podem ter lugar algum no verdadeiro domínio iniciático, enquanto que, ao contrário, ocupam quase sempre um espaço muito grande na maneira de atuar dos falsos instrutores. É unicamente a estes a quem se deve denunciar e combater, cada vez que as circunstâncias o exijam, não somente pelos autênticos Mestres espirituais, mas também por todos aqueles que possuem algum grau de consciência do que realmente é a iniciação.


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